top of page
Foto do escritorJúlia Reis

Toxicomanias e sintomas contemporâneos

Texto escrito por Júlia Reis, Doutora em Psicologia pela UFMG e coordenadora geral da Pós-graduação em Toxicomania, Psicanálise e Atenção Psicossocial do Instituto ESPE.



O que significa dizer que as toxicomanias se localizam no rol dos chamados sintomas contemporâneos ou novos sintomas? É sabido que o uso do álcool e de outras drogas não é novo na história. Contudo, as drogas são consumidas de diferentes formas e de acordo com a cultura e com os distintos momentos históricos. Os significados e discursos sobre a droga também se modificam e vão adquirindo diferentes contornos com o passar do tempo. Assim, segundo Escohotado (2004), o início do uso de substâncias psicoativas pela humanidade foi marcado pela busca por experiências místicas, religiosas, conexões com as divindades e com os mortos.


Atravessando o tempo e as culturas, a droga assumiu funções de festejo, terapêuticas, medicamentosas e sacramentais. São as nuances que marcam o consumo das substâncias: qual a substância escolhida para o uso, a quantidade, mas, principalmente, qual a função que cada substância opera na economia de gozo de cada sujeito?


Diante desse contexto, na teoria psicanalítica, desde Freud, o uso de substâncias é considerado a partir da concepção da droga como phármakon, conceito estabelecido na Grécia antiga, que designa ao mesmo tempo remédio e veneno. A droga, portanto, pode ser benéfica ou maléfica, de acordo com a dose, o uso e a função específica que desempenha para cada sujeito: pode operar como um medicamento, promovendo uma regulação ou apaziguamento do gozo, bem como um veneno, nocivo, tóxico, podendo mesmo levar o sujeito à ruína e à morte.  


Freud já apontava para a função da intoxicação como algo para além do princípio do prazer, para além da satisfação, no texto “O mal-estar na civilização”. Segundo o autor, a droga se colocava como um amortecedor de preocupações, como uma busca por uma pacificação diante do mal-estar próprio da civilização. Contudo, o uso de narcóticos como uma medida paliativa, como uma saída para o mal-estar que acomete o sujeito, tem um custo: “uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo seu próprio castigo” (Freud, [1930] 1996, p. 85).  


O uso de substâncias nos dias atuais não é o mesmo de outrora. A pesquisa acerca da clínica das toxicomanias se coloca no campo dos sintomas contemporâneos, ou novos sintomas – adicções, transtornos alimentares, depressões, autolesões, transtornos de pânico, violências, suicídios – que apontam para o limite da prática psicanalítica. São sintomas que não se submetem às leis simbólicas, ou seja, não se apresentam mais sob os moldes dos chamados sintomas analíticos.  


Freud define os sintomas como formação de compromisso entre os sistemas psíquicos, uma satisfação substitutiva diante da pulsão sexual recalcada, como o retorno do recalcado. Os sintomas analíticos eram portadores de sentido (inconscientes) a serem decifrados em análise a partir da relação transferencial que se opera entre analisando e analista (Freud, [1916-1917] 1996). Todavia, não passa desapercebido a observação de sintomas que, mesmo naquela época, escapavam a essa significação, nomeados “neuroses atuais” - neurastenia, neurose de angústia e hipocondria.


Os sintomas das neuroses atuais não tinham sentido algum, nem significado psíquico, e sua manifestação se dava principalmente no corpo. Definição semelhante ao que se encontra nos sintomas contemporâneos, que exprimem uma satisfação que não está submetida às exigências do recalque e se apresentam pela invasão da pulsão no corpo, fora-do-sentido e da fala, marcados pela escassez da fantasia inconsciente e por um discurso que privilegia o mais-de-gozar e promove uma desregulação pulsional. 


Para que se possa entender essa afirmação é preciso retomar a definição de discurso apresentada por Lacan ([1969-1970] 1992) em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, em que ele apresenta uma lógica discursiva para além do Édipo. Na passagem da estrutura do mito à teoria dos discursos ele “anuncia que a castração não é efeito da inscrição do Nome-do-Pai e sim do discurso, pois desde o encontro com a linguagem o sujeito é marcado por uma perda de gozo” (Mendonça, 2022, p.122).


Nesse seminário, Lacan apresenta quatro discursos – do mestre, da histérica, do universitário e do analista –, que tratam da relação do sujeito com o Outro e com os objetos. Todavia, ele se refere a um outro discurso, e o retoma na conferência proferida em Milão em 1972. Trata-se do discurso do capitalista, sobre o qual ele afirma que, diferentemente dos outros quatro, não faz laço social.  


Segundo Lacan, há, assim, na atualidade, uma mudança na hegemonia discursiva com o surgimento do capitalismo. O excesso da produção de objetos leva a um imperativo superegóico de consumo para os sujeitos: “Goze!”. O discurso do capitalista substitui o discurso do mestre, que era marcado pela primazia do inconsciente, do sentido, do simbólico e dos ideais. Há, portanto, um processo de “dessimbolização que afeta nossa sociedade” (Lebrun, 2004, p. 14), afirmação que vai ao encontro de Zygmunt Bauman, que também já apontara uma “liquidez” nas relações, evidenciando a dificuldade na construção dos laços sociais no contemporâneo. 


As investigações atuais no campo freudiano apontam para profundas modificações no contemporâneo e uma das principais se trata dos efeitos do declínio da autoridade paterna sobre as formações das subjetividades. Se, em Freud, a intoxicação era descrita como uma das formas, ou saídas, para o mal-estar civilizatório, na atualidade, com o predomínio do discurso do capitalista, há um vazio de sentido e a emergência de um gozo unitário, autoerótico. Em sua relação com o objeto-droga, o sujeito busca se livrar dos impasses decorrentes da castração e de sua relação com o Outro. Com a droga se alcança, como afirma Lacan ([1975] 2016), uma ruptura com o gozo fálico “Disso decorre o sucesso da droga, por exemplo. Não há nenhuma outra definição da droga senão esta: é o que permite romper o casamento com o pequeno pipi”.


Na atualidade, o declínio das instituições, regras e sistemas simbólicos tem como contrapartida o crescimento dos objetos de consumo, os gadgets (termo de origem inglesa que significa aparelho, dispositivo, engenhoca, bugiganga, geringonça, uma espécie de apetrecho tecnológico). São esses “objetos de consumo curto e rápido” (Quinet, 2002, p. 35) que promovem uma satisfação rápida, e por isso mesmo logo se tornam dejetos, descartáveis. Na categoria dos objetos de consumo se inclui o objeto-droga, apresentado como algo que promoveria a plena satisfação da pulsão. Entretanto, essa promessa de felicidade é um engodo imaginário, frágil, porque o que caracteriza o movimento da pulsão, tal como Lacan nos diz no Seminário 11, é a falta; não há um objeto que satisfaça plenamente a pulsão.  


Assim, para concluir, observa-se que a infinita oferta de “novas” drogas produzidas pela ciência, coadunada com o discurso do capitalista, segue a lógica do novo, também presente nos novos sintomas. Segundo Miller (1997) “nos dias de hoje, a forma sintomática é o novo, a nova forma sintomática do mal-estar na cultura”. Há um anseio, um culto pelo novo, pelo gozo da novidade, mas que rapidamente se converte em dejeto.


Diante desse panorama, colocam-se muitas perguntam para os analistas que, como advertia Lacan, precisam estar à altura da subjetividade de sua época para que possam conduzir as análises de maneira ética. Apesar dos questionamentos, é na aposta pelo sujeito do inconsciente que mantemos vivo o desejo de escutar aqueles que fazem uso abusivo de alguma substância psicoativa. É ao tomar cada caso em sua singularidade que a análise pode acompanhar cada sujeito em sua invenção particular e construir um saber-fazer com seu sintoma. 



 

Sobre a autora: Psicanalista. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFMG). Mestre em Psicanálise pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (UERJ). Especialista em Psicopedagogia (UERJ). Graduação em Psicologia (UFRJ). Psicóloga e Psicanalista pela Escola Brasileira de Psicanálise/ICP-RJ. 


Revisão e publicação realizada pelo psicanalista e pesquisador Thales de Medeiros Ribeiro.


 

Referências


Escohotado, A. História elementar das drogas. Lisboa: Antígona, 2004.


Freud, S. [1916-1917] Conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Freud, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 16.


Freud, S. [1930] O mal-estar na civilização. In: Freud, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 21.


Lacan, J. [1969-1970] O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.


Lacan, J. [1975] Encerramento das jornadas de estudos de cartéis da Escola Freudiana. In: Pharmakon digital, n. 2, 2016. Disponível em: http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/. Acesso em: 07 jul. 2024.

 

Lebrun, P. Um mundo sem limites. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.


Mendonça, J. R. S. Toxicomanias e psicoses: contribuições psicanalíticas. Curitiba: Appris, 2022.


Miller, J.-A. O sintoma e o cometa. In: Opção Lacaniana, n. 19, p. 5-13, 1997. 


Quinet, A. A ciência psiquiátrica nos discursos da contemporaneidade. In: Quinet, A.; Peixoto, M. A.; Viana, V.; Lima, R. (Orgs.). Psicanálise, capitalismo e cotidiano. Goiás: Germinal, 2022. p. 32-40

 

 

Saiba mais


Gostou da matéria? Gostaria de continuar recebendo semanalmente os conteúdos de psicanálise do Instituto ESPE? Entre em nossa lista de e-mail ou grupos de WhatsApp e faça parte de nossa comunidade!






Não deixe de conferir os programas de pós-graduação, atividades, cursos livres, seminários e cursos clínicos de nossa instituição, propostos por docentes e pesquisadores(as) com no mínimo dez anos de clínica e transmissão.




266 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page