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Psicanálise e Luto: Introdução à temática

Transcrição da aula aberta do Instituto ESPE ministrada pelo psicanalista Christian Dunker, Doutor em Psicologia Experimental (1996) pela Universidade de São Paulo.



"Um luto termina quando a perda se integra em uma cadeia de lutos que o precedeu e o tornou possível. Essa tarefa pode se afigurar terminável para alguns e infinita para outros."
INTRODUÇÃO À TEMÁTICA DO LUTO NA PSICANÁLISE

Ao longo da história e em distintas eras e comunidades, o luto tem representado um desafio literário, filosófico e ético. Contudo, trata-se também de uma tarefa prática que todos nós enfrentamos. O luto é a empreitada de recomposição, simbolização e subjetivação da perda, seja ela a morte de um ente querido, o luto por um relacionamento findo, a nostalgia por uma época ou experiência, ou mesmo a perda de algo tão tangível como um emprego e tão intangível como um sonho.

Diante desse contexto, surge a indagação: qual o manejo clínico apropriado para pacientes imersos no processo de luto?

Em junho de 2024, o professor e psicanalista Christian Dunker realizou, como parte do seminário “Psicanálise e Luto: Manejos Clínicos” ministrado por ele pelo Instituto ESPE, uma aula aberta no nosso canal do YouTube, trazendo alguns apontamentos iniciais e considerações sobre o assunto. O percurso pode ser encontrado, na íntegra, na plataforma ESPECast.

O que segue é uma seleção de alguns desses apontamentos, transcritas de sua fala e estabelecidas em texto.


 
O PERCURSO E SUA GÊNESE

Os encontros giraram em torno do manejo clínico e do conceito psicanalítico de luto e de como é possível ajudar os analisandos nessa travessia, nesse trabalho de simbolização, com suas vicissitudes, mais ou menos previstas. Seguiu as ideias apresentadas pelo professor Dunker em seu livro Lutos Finitos e Infinitos, lançado em 2024 pela Editora Paidós.

“É um trabalho que me tomou bastante tempo, envolveu processos pessoais e luto e também um trabalho longo com a literatura, não só a literatura especializada, técnica da psicanálise, da filosofia, mas também da literatura: os relatos, os testemunhos, as declarações que vem cercando a elaboração, principalmente quando toca a elaboração coletiva do luto na nossa época. “– nos conta Dunker.


O PROCESSO DE LUTO

O processo de luto – se tomamos autores como Philippe Ariès, que trabalhou com a história da morte no Ocidente – é um processo que vem desde a modernidade, tornando o morrer e a morte algo crescentemente silenciado, invisível, fora da praça pública, terminando, no nosso momento, como uma situação que frequentemente está permeada pelo afeto da vergonha: a vergonha de morrer, a vergonha de se ver sofrendo, a vergonha de falar sobre isso com os outros. A vergonha que, inclusive, vai acompanhando um processo descrito por Jean-François Lyotard no seu trabalho sobre a pós-modernidade de “encurtamento das grandes narrativas”, as grandes narrativas políticas, sociais, culturais e, entre elas, as que nos ajudam a suportar e articular simbolicamente e coletivamente o luto.

“Um dos motivos que me fizeram escrever esse trabalho e pensar sobre essa questão – e atualizar, de certa maneira o problema do luto – foi a leitura de um trabalho do Jean Allouch chamado A Erótica do Luto.” – nos conta professor Dunker. – Allouch foi um psicanalista, recém falecido, que perdeu uma filha. No enterro desta ele se viu então cercado de psicanalistas, esperando, de alguma maneira, que alguma palavra fosse dita, que algo fosse dito por estes psicanalistas. “Nós analistas, especialistas no sofrimento, na consolação, na arte de dizer coisas difíceis em momentos difíceis.” – frisa Dunker.

Aconteceu que ninguém teve nada a dizer. Houve um silêncio respeitoso, mas também uma espécie de déficit de palavras sobre o assunto.

Isso, segundo Dunker, combina com o processo de “invisibilização”, de vergonha em relação à morte, de hospitalização, de pensar a morte ou o morrer estritamente num contexto higienista, mas também fala de um decréscimo das narrativas religiosas, que se incumbiram de falar sobre a morte, especialmente em certos circuitos culturais, em certos segmentos – como entre psicanalistas.

O que teria acontecido para que o assunto se tornasse meio desagradável?

“Sempre foi, em alguma medida” – pondera Dunker – “mas a gente poderia fazer um contraste com a forma como os romanos, como os gregos, como muitas populações lidam com a morte e que envolve falar, lembrar, envolve ritos, envolve cerimônias coletivas, que também foram se reduzindo no nosso contemporâneo. Algumas remanescentes de formas religiosas – a missa de sétimo dia, a missa de um ano, missa de 30 dias, mas no fundo há uma espécie de encurtamento do processo de luto a ponto de que no DSM-5 a gente encontre uma especificação do tipo: “Olha, se passar de um mês, 15 dias, e a pessoa continuar enlutada, temos problemas” Pensa que pode estar acontecendo uma interrupção, uma problemática que remete justamente a tratar isso como uma forma patológica. Ou seja, a ideia de que o luto é uma experiência que traz consigo uma temporalidade absolutamente própria, singular – para um pode ir rápido, para outro pode demorar – e que essa variação é uma diversidade humana, não é símbolo patológico, é uma ideia meio surpreendente de ser introduzida.” – explica Dunker, acrescentando que o motivo para isso é que o luto escapa a certas regularidades de desenvolvimento, certas regularidades de reação, sendo ele, ao mesmo tempo, um trabalho e um ato. Um trabalho de recomposição e reconstrução daquilo que foi perdido ao mesmo tempo que é um ato de criação de algo novo.


O LUTO PARA A PSICANÁLISE NÃO CONSIDERA APENAS A PERDA DE ENTES QUERIDOS

Logo no início do texto Luto e Melancolia, Freud coloca que o luto se aplica à perda de entes queridos, mas também pode se apresentar como o luto de uma ideia, de uma abstração que substitui, representa ou simboliza uma pessoa, de um país. E podemos assim então acrescentar: pode ser o luto de uma época, de um grande amor, dentre outros.

“Ampliem a problemática do luto para além de: uma pessoa morreu. Quando um casal se separa, quando uma relação amorosa termina, vai advir um luto.” – nos diz Dunker acrescentando que isso para nossa cultura já é quase uma novidade porque hoje em dia temos vários dispositivos, especialmente aqueles que concernem a linguagem digital, onde você rapidamente elimina, apaga fotos, transforma o processo de desligamento em um processo de desligamento, em um processo de negação por apagamento. “Ou seja, cada um vai ter o seu trabalho de luto, cada um vai ter o seu processo, mas a gente sabe de algumas condições que são adversas para que o luto aconteça.” – completa Dunker.

Este trabalho se traduz no quê? Efetivamente, o que eu tenho que fazer para cumprir o luto?

Basicamente a gente tem uma resposta em Freud que vai, aproximadamente ser esta: a gente tem que responder a três perguntas:

A REALIDADE DO OBJETO PERDIDO

A primeira pergunta é concernente à realidade da perda, ou seja, qual é a realidade disso que perdi? Qual é o estatuto de realidade desse amor que acabou? “É muito comum pessoas que, depois de um grande amor que termina, dizerem: “Não, isso não era um verdadeiro amor!” Porque não era um verdadeiro amor? Por que terminou?” – questiona Dunker dizendo que esta ideia de que o amor verdadeiro é eterno é um equívoco, mas serve como uma maneira de compreender como as respostas das pessoas à realidade do que foi perdido são múltiplas.

No ponto de vista estrutural temos uma formulação que diz que é na hora que algo acaba, ou se decompõe, ou vira outra coisa, que se descobre do que aquilo é feito.  Dunker exemplifica essa formulação dizendo que quando rasgamos uma folha de papel, descobrimos que “rasgável” é uma propriedade que emerge do fato de agora não termos mais uma folha de papel, e sim três pedaços de papel. O mesmo pode ser aplicado à pergunta: O que é um corpo? O que é um corpo a gente descobre quando não temos mais um corpo. O que é a saúde? A gente só descobre quando adoece. O que foi feito daquele amor? A gente só descobre quando ele termina. “É quase uma questão ontológica, do que foi feita essa perda.”

Assim, cada pessoa vai mobilizar suas respostas, podendo ir do espectro mais concreto – de que aquela perda é perda de um objeto, de uma coisa – até aqueles que vão dizer que não conseguem definir perfeitamente aquilo que perderam naquele que perderam.

Por que isso acontece?

Considerando-se então  que perdi um objeto - um objeto coisa.  A resposta mais primitiva, mais problemática, porque no fundo ela está dizendo assim: “Eu não perdi nada que se pareça comigo.” No pólo oposto há a ideia de que essa perda – a realidade dessa perda – diz respeito à finitude intrínseca da vida humana. “Ou seja, todos nós vamos morrer. Portanto, que eu vou morrer também. Mas essa ideia é uma ideia negativa aplicada sobre o meu narcisismo.”.

O que diz Freud sobre ideias negativas? No inconsciente nós não temos tempo e nós não temos negação e, por isso, ele não admite contradição. Quer dizer que essa realização subjetiva da morte como negatividade nunca será completamente efetivada. Ou seja, aceitar a finitude generalizando – primeiro a dos mais velhos, por exemplo – até ir chegando mais perto, onde o sujeito não consegue subjetivar completamente sua própria morte. Isso deixa um traço pendente que faz com que acreditemos na morte dos outros, mas mantenhamos um resto de ilusão de que conosco isso não irá acontecer.


COMPARAÇÃO E CONTAGEM DE TRAÇOS

A segunda pergunta: Que tipo de relação eu tinha com essa pessoa? Do que era feita essa relação? Como ela permite comparar o objeto perdido com o eu?

Este trabalho – ou segundo tempo do luto – vai implicar duas operações simultâneas: comparação e contagem de traços. Traços que estão lá no objeto que eu comparo com o eu. Traços que eu conto no objeto que eu conto no eu. Este trabalho, portanto, recria o processo de identificação que o eu tem com esse objeto perdido. Ele vai compactando, unificando, reduzindo, portanto, o objeto perdido. Isso envolve identificações alternadas e afetos alternados que acompanham essas identificações. 

É muito comum que, nos primeiros momentos do luto, aquele objeto perdido seja idealizado.


“As pessoas brigavam dia e noite. Tinham ali uma luta ferina, mas morreu, virou santo. Ah, mas aquela pessoa era tão boa. Há duas semanas você estava amaldiçoando aquela pessoa, mas agora ela realmente se tornou um ente cheio de propriedades mágicas, cheio de bondades, e etc. Isso é próprio da resposta que a gente está dando para essa pergunta. Quem é esse outro que você foi, em relação a mim? A identificação alternante, ela alterna o quê? Ela alterna o fato de que esse outro me deixou. Aconteceu porque, no fundo, eu não cuidei dele o bastante. Eu não o amei o bastante. A minha presença não foi suficiente para mantê-lo aqui, neste mundo. Portanto, eu o elevo, na medida que eu também me diminuo.” – nas palavras, bem didáticas, do professor Dunker.


E há também o sentimento tão comum de culpa. “Ele foi porque eu não estava presente naquele dia. Eu sinto que não estava do lado dele quando ele morreu. Isso me deixa culpado. E as palavras que eu não disse? E as coisas que eu não falei?”. Há algo que restou por ser dito e esse algo é a fonte de uma espécie de dívida daquele que sobreviveu em relação àquele que se foi. Essa dívida é muito conhecida, no caso de mortes trágicas, mortes violentas, mortes coletivas onde existe um que escapa e outros que morrem. O que é que este que escapa sente? A culpa do sobrevivente. Eu não fiz ou eu fiz alguma coisa e eles se foram.


Esse sentimento se alterna com seu reverso: se ele se foi é porque ele não me amava tanto assim. “E eu posso me lembrar agora, no segundo tempo, de que aquela mãe incrível, que era boníssima, eu lembro que uma vez ela me deu aquela chinelada, aquela outra vez ela não estava presente no momento que eu precisava, ela me largou para sair por aí. E eu tenho sentimentos hostis em relação a essa pessoa.” – exemplifica Dunker acrescentando que estes sentimentos são o que, em regra, a gente recalca, segundo Freud.


“Toda perda, todo luto, começa com um ato desagradável de que foi o outro que foi embora. Eu estou aqui. Ele foi-se para outro mundo. Ele me abandonou.” – conta Dunker, acrescentando que a palavra “abandono” vem de “bando”. “Abandonou. Não faço mais parte daquele bando. Você foi para outras bandas. Você deixou esse mundo e foi viver no mundo dos mortos.” – completa ele.


Isso recupera o que? O fato de que não foi a primeira vez que você fez isso comigo. Não foi a primeira vez que você me decepcionou, que foi hostil comigo, que promoveu em mim afetos hostis. Para o sujeito então tentar esquecer essa parte, evitar esse “capítulo desagradável” o que ele faz? Ele aumenta a idealização. O sujeito enaltece o que se foi ainda mais na tentativa de ocluir, como forma de tentar negar a contrariedade ou contradição que cerca este objeto que foi perdido. Esse processo pode, então, ser mais longo ou mais curto, mas o que ele envolve são os mecanismos de comparação e contagem: um, dois, três, quatro, cinco.


MOMENTO DA LEMBRANÇA

Este é o momento onde a gente precisa encontrar fotos, mexer nas coisas, às vezes desmontar a casa, dar os objetos, realizar um trabalho mecânico e manual que é correlato de um trabalho psíquico. A pessoa deixa muita coisa. O que daquilo que você recebe como herança vai continuar com você? O que você vai guardar?


Quero guardar tudo! Problema. Sua vida vai ficar cheia de malas que não são exatamente suas e que você estará carregando. Dunker exemplifica este problema citando um quarto recentemente aberto em Paris, que estava exatamente como em 1929, quando o seu ocupante foi para a guerra e morreu. A família então fechou e lacrou o quarto, como um museu.


“Muitas pessoas fazem isso como que para congelar aquele instante e não deixar com que aquela pessoa vá embora.” – diz Dunker.


Existe a necessidade de seleção do que sobrou, o resto tem que deixar ir. Quantos menos objetos materiais ficam, maior a densidade simbólica do que eles representam. “Tem aí comparação e contagem: 1, 2, 3, 4, 5.... Você pode escolher ficar com 27, pode escolher 11, pode escolher 2, mas é um processo psíquico de contagem. Esse processo, às vezes, se delonga indefinidamente, às vezes se interrompe. É o caso da melancolia, em que Freud diz: “a sombra do objeto cai sobre o eu. Então aí eu não consigo mais fazer essa comparação porque não é o objeto que cai sobre o eu, é a sombra dele, ou seja, ele coloca o eu numa situação em que o eu se torna uma réplica, um prolongamento projetivo do objeto perdido” – explica professor Dunker acrescentando que o eu se perde junto com o objeto e que, por isso, ele não consegue avançar no processo de luto.


O eu passa então a desenvolver algumas patologias bastante curiosas tais como o delírio de negações, o delírio – ou síndrome – de Cotard, ao qual Lacan faz inúmeras referências. Este é um delírio em que o que ocorre é uma negação do próprio eu, da própria experiência egoica, que está ligado à superfície corporal, está ligado a afetos, está ligado ao sentimento de si. Este sentimento de si desaparece a ponto da pessoa dizer coisas como: “Olha, eu não tenho nome mais, mas a pessoa que um dia eu fui chamava-se Janete.” Assim, ela vai responder às perguntas a partir desse recurso: a pessoa que um dia ela foi. Por quê? Porque ela está morta, morta como o objeto que se foi.


Isso, como diz Freud, acontece no caso grave da melancolia e é, ao mesmo tempo, a etapa com a qual se encerra o segundo tempo do luto – o momento em que a gente morre junto.


“É o momento em que nos ritos judaicos a gente corta a roupa, a gente cobre o espelho, a gente se mortifica.” – diz Dunker acrescentando uma menção ao caso de um menino que perde o gato e que, ao elaborar o que foi este gato, se encontra miando debaixo da mesa. “O que ele está fazendo? Trabalho de luto. Ele está se pondo no lugar do gato, está vivendo esse lugar para poder se separar do gato.”



TERCEIRO MOMENTO: QUANDO O LUTO ACABA?

Professor Christian nos introduz então à terceira tarefa do luto e diz que ela é uma tarefa poiética, criativa, acrescentando que este problema é um problema levantado por Freud e que é o problema básico de seu livro já citado “Lutos Finitos e Infinitos”.


Nas palavras do Professor Dunker:


“O problema que eu tento responder neste livro, um problema muito pouco abordado, inclusive na literatura psicanalítica, que é: “Quando é que o luto termina? Quando é que ele acaba?” E a gente vai dizer: “Não, mas num certo sentido eu vou estar sempre me sentindo saudades, tristeza, aquela pessoa vai continuar comigo.” É verdade, mas isso não é luto. Luto é um trabalho e tem um começo, com a realidade - isso que eu perdi -,  tem um meio - que é do que é feita essa relação -  e tem um fim. É um momento em que o Freud diz precisamente: um novo traço se erige dentro do eu. Um novo traço. Não é só contar e comparar. Eu preciso criar algo novo, um traço simbólico que represente, de forma condensada e unificada aquele, ou aquela, que se foi. E quando isso acontece, o eu se enriquece. Ele tem um sentimento de alegria e liberdade.” 


Assim, Freud especula que é porque o eu se libertou do trabalho de luto.


Enquanto estava em trabalho de luto, a libido sua libido se rebaixou, o sentimento de autocrítica aumentou, o mundo se tornou menos interessante. “Eu estou fazendo essas identificações e re-identificações, eu recuo em relação ao mundo, eu tenho estados de alteração da consciência, eu tenho sonhos, eu tenho pesadelos, eu tenho sonhos de angústia, mas, quando termina o luto, é como se todo esse trabalho que eu acostumei o eu, ele se invertesse num momento de libertação. Ele caracteriza o afeto da alegria. A gente tem poucas teorizações psicanalíticas, você pergunta o que é a alegria, qual é o modelo de alegria psicanalítica? É o modelo de terminação do luto.” – pontua o professor Dunker fazendo uma analogia ao momento da festa em outro texto importante de Freud: Totem e Tabu. Este momento onde, uma vez que o pai foi morto, uma vez que o pai foi devorado – em um processo de simbolização por identificação, nesse caso da antropofagia – há depois o momento onde se comemora, representado pelo banquete totêmico, realizado em forma de ritual, periodicamente. “Que bom que somos como aquele que um dia se foi!”


É um momento de alegria, de júbilo, que implica então que há uma terminação para o luto. Essa terminação responde a uma espécie de metamorfose do eu, da relação com o objeto e da realidade própria interna a esse objeto perdido.



O LUTO COMO UMA COLCHA DE RETALHOS

Christian nos conta que existem vários manejos do luto que são concernentes a esses momentos. Ele apresenta a teoria da psiquiatra suíça Elizabeth Küber-Ross como sendo a mais popular. Essa teoria diz que há um trajeto retilíneo nesse processo, como um trem que vai passando por várias estações: primeiro pela negação, depois pela barganha, pela raiva, pela depressão – depressão não patológica – até chegar à aceitação, sendo assim cinco etapas.


“O modelo de Elisabeth Küber-Ross não é exatamente falso, porque a gente vê isso nos pacientes.” – diz Christian “mas ele leva a gente a um entendimento do trabalho de luto retilíneo, em que, uma vez cumprida uma etapa, a gente não vai voltar pra trás. Isso não me parece corresponder à clínica.” 


Christian Dunker contrapõe essa ideia etapista do luto em seu livro com a ideia de que o luto compreende vários trabalhos diferentes, tal como uma colcha de retalhos, onde você tem vários fragmentos, vários traços, vários resíduos do objeto e se sente como que fragmentado, distribuído entre esses traços. O luto seria então a costura desses traços de tal maneira a reconstituir a unidade da experiência.


O Freud pensou desse jeito: são três grandes problemas.


Para Lacan, cada uma dessas perguntas se desdobra em dois movimentos, de tal maneira que em vez de três passamos a ter seis articulações internas ao luto que não acontecem de forma sucessiva. O luto, portanto, pode resolver este momento, essa questão. Daí o sujeito passa a trabalhar, ao mesmo tempo, na costura de outra questão. Terminando de fazer essa costura, vê-se que sobrou um pedaço aqui, um pedaço da costura, um pedaço de pano. Dessa forma, se desfaz tudo e se inicia tudo novamente.


“Ou seja, o truque aqui é um trabalho em que a experiência que existiu uma vez com aquele outro precisa ser refeita de tal maneira que ela de novo mostre a integridade de uma relação. E há um modelo Lacan para essa reconstituição de unidades que é o modelo do nó borromeano.”


Real, Simbólico e Imaginário formam uma unidade cuja propriedade principal é que se você rompe um desses nós, os três se separam. E está aí a lógica da colcha de retalhos. “Se sobrou um, não adianta. Vai ter que costurar tudo de novo até colocarmos todos os retalhos em dia e aquilo formar uma nova colcha. Pode até ser que uma parte fique para trás, mas isso que ficou aqui reconstituído representa uma nova combinação, ou seja, tem esse efeito de criação que agora permanece comigo e faz parte do eu” – conclui Dunker passando a mostrar como esse processo se dá.


 

QUER SABER MAIS SOBRE O LUTO E A PSICANÁLISE?

Confira a segunda parte de nossa transcrição onde trabalharemos sobre o manejo clínico do luto na psicanálise. Caso queira continuar estudando com o psicanalista Christian Dunker, o curso completo sobre o tema poderá ser encontrado, na íntegra, na plataforma do ESPEcast a partir de novembro de 2024.

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Sobre o autor do vídeo: Psicanalista, Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Obteve o título de Livre Docente em Psicologia Clínica (2006) após realizar seu Pós-Doutorado na Manchester Metropolitan University (2003). Possui graduação em Psicologia (1989), mestrado em Psicologia Experimental (1991) e doutorado em Psicologia Experimental (1996) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano. 


Transcrito e estabelecido em texto por Gustavo Espeschit.  




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