Texto escrito por Tiago Ravanello, Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A expressão “o meio é a mensagem”, atribuída ao filósofo Marshall McLuhan é comumente utilizada quando diferentes modos de comunicação e de transmissão de informações são colocados em questão. Quando assistimos ao vivo e in loco a uma peça de teatro temos uma forma de viver e experimentar a situação que é completamente diferente se tentarmos transpor ou traduzir a situação para outro meio, tal como o cinema, a televisão, o rádio e etc.. O meio através do qual uma mensagem é endereçada constitui um aspecto absolutamente relevante e intrínseco à própria mensagem, o que faz da “linguagem teatro” única e inconfundível, valendo o mesmo para outras formas de produções artísticas, culturais e intelectuais. Mesmo “ler” ou “ouvir” a leitura são atos que promovem efeitos diversos. Lacan foi sensível a isso quando, em seus Escritos, buscou por diversas vezes a referência aos trabalhos de Roman Jakobson, especialmente no que diz respeito a uma teoria das funções da linguagem que destacava como seus elementos o emissor, o canal, a mensagem, o código, o contexto e o receptor. Disso, Lacan concluiu em torno da tese da não-relação, da inexistência da comunicação haja vista que nunca possuímos verdadeiramente um destinatário, mas outro emissor, o que faz com que recebamos nossa mensagem invertida desde um outro.
Já não fosse a transmissão da psicanálise pensada apenas através do ângulo do conteúdo um problema suficientemente complexo, temos que somar a isso o fato de que tanto Freud, quanto Lacan não puderam testemunhar as revoluções de nossa contemporaneidade em termos de transmissão das informações e suas implicações do ponto de vista da formação. Se a formação do analista é feita através do tripé (a soma de três ações: estudo, atendimento supervisionado e análise pessoal) e garantidos pela função social exercida pelas escolas de psicanálise, devemos levar em consideração que as formas de estudo foram radicalmente modificadas em função de adventos tecnológicos. Portanto, como repensar a formação do analista em tempos digitais? Qual o lugar do analista no cyberespaço? Como localizar a psicanálise no mundo infinitizado dos algoritmos, das redes sociais e do streaming? Nesse breve ensaio, vamos nos ater especificamente ao problema da diversidade de modos de estudo e sua implicação na formação do analista a partir da multiplicação de meios de transmissão de saberes sobre a psicanálise através das possibilidades que surgiram com a internet.
Logo de partida, gostaria de lançar uma aposta (ou ainda, um exercício de imaginação)
Coloco todas as minhas fichas na hipótese de que, caso estivessem vivos em nosso tempo, as produções de Freud e Lacan hoje estariam disponíveis e acessíveis por meios de plataformas de informação na internet. Podemos facilmente supor que os seminários de Lacan seriam transmitidos em tempo real pelas redes, ou mesmo, tornar-se-iam um canal no Youtube. As conferências introdutórias de Freud talvez fossem veiculadas por uma grande plataforma de cursos, ou ainda, vistas através de lives. Minha razão para supor esse exercício imaginativo tem a ver com o fato de que ambos os autores prestaram grande atenção e investiram sua curiosidade no nascimento de diferentes tecnologias e seus impactos tem termos de pluralização do acesso ao conhecimento. E foi assim que Freud concedeu entrevistas a rádios, escreveu artigos para enciclopédias e fez questão de eternizar sua imagem através do nascimento da arte cinematográfica. Lacan, por sua vez, brindou-nos com Radiofonia e Televisão, além de ter incorporado em sua reflexão em seu quarto seminário – sobre as relações de objeto – elementos da linguagem binária advindas de uma nova ciência vista por ele como absolutamente promissora: a cibernética, ou seja, a linguagem computacional em seu estado nascente.
A psicanálise, desde seus primórdios, foi pensada como uma práxis voltada para a cultura, tanto no sentido de questionar e subverter modos correntes de ser e viver, mas também por se fazer ouvir para além dos muros de suas instituições. Prova disso é o surgimento dos chamados textos culturais de Freud, tais como Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, Reflexões sobre os tempos de guerra e morte, Futuro de uma ilusão, Por que a guerra?, Totem e tabu e Mal-estar na civilização. Não se trata, obviamente, apenas de textos de popularização da teoria psicanalítica, mas de questionamentos verdadeiramente endereçados à sociedade, à pólis que o analista habita independentemente de sua vontade. Sim, a política é um âmbito inerente à prática psicanalítica e vai muito além da redução contemporânea ao binarismo partidário, pois toda análise e toda a formação do analista comporta em si uma dimensão política que reatualiza a causa analítica a cada entrada no campo, seja pela poltrona, seja pelo divã (preferencialmente por ambos).
Pois bem, se a psicanálise se destina ao grande público e não ao enclausuramento de suas teses na circulação por pequenos grupos, ela tem por certa obrigação abrir lugar em sua reflexão para sua forma própria de habitar o cyberespaço. O que não pode ocorrer de forma acrítica sob pena de permitir falhas éticas graves. Disso podemos inferir uma primeira conclusão, que embora pareça óbvia e tautológica, não é sem consequências importantes: o lugar do analista na rede deve servir à causa analítica, e não ao analista. Se bem entendermos o analista como lugar ou função, a ressalva se torna desnecessária. Caso contrário, faz-se fundamental recolocar a crítica que a reafirmação constante do analista como analista, confundindo sua função com o seu ser, seu lugar com o seu eu, promove um desserviço à psicanálise em seu sentido amplo. E nisso se faz necessária uma ressalva importantíssima aos ingressantes no campo: a ânsia por ver a experiência clínica decolar tem lançado jovens analistas em formação à exibição do eu como estratégia de marketing digital, criando relações de identificação com “clientes em potencial” a partir da exposição de sofrimentos particulares, traços pessoais, interesses singulares ou, ainda pior, diagnósticos autoproclamados. O/a psicanalista ciente de seu compromisso ético faz do cyberespaço um lugar de transmissão, de sustentação de um discurso, e não o veículo de autopromoção.
A segunda conclusão sobre o tema deve ser mais frontalmente direcionada à questão da formação
É possível estudar psicanálise, uma práxis nascida na virada do século XIX para o XX, utilizando as ferramentas hoje disponíveis para circulação das informações? Certamente que sim. E esse estudo pode formar um analista? Pode ser uma parte da formação, mas não o suficiente para a integralização do processo. Dito de outra forma, não há como negar o efeito positivo da ampliação incomensurável do alcance que a internet nos legou: e não há nenhum motivo para furtarmo-nos de fazer um uso propício disso. Lembro que no princípio de minha trajetória no campo psi, décadas atrás, estava lá presente o sonho de um dia ter acesso ao diálogo com grandes nomes da psicanálise. Nos meus primeiros passos, almejava poder participar de congressos e encontros nacionais como modo de aproximação, mesmo que muito limitada, em relação aos autores e autoras dos livros, textos e artigos que lia de forma voraz. E parecia uma quimera muito distante sequer ouvir a voz dos grandes nomes da teoria psicanalítica que residiam em outros países ou continentes. Anos mais tarde, durante meu estágio doutoral em Paris, comprei um pequeno gravador digital e registrava com uma disciplina prussiana todas as falas, aulas e palestras que me concedessem a permissão. Esse esforço de registro hoje beira o ridículo, tamanha a disponibilidade que temos em mãos, a um clique de (encurtar) distância.
Não há recuo possível frente a esse processo de democratização do acesso e ampliação do escopo do saber. E soma-se a isso uma reformulação dos modos de estudo: a internet já é o principal modo de acesso à informação independentemente da área de atuação, grupo social ou nível de escolaridade. Cada vez mais os/as profissionais de diferentes campos de atuação tem buscado em plataformas digitais os conteúdos pertinentes ao aprendizado ou implemento de suas práticas. “Não li o último livro dele mas assisti ao curso sobre o livro”. “Não li o artigo, mas tenho acompanhado o desenvolvimento da ideia pelo canal”. Falas como essas, tão comuns nos meios formativos não são a prova cabal do abandono do rigor quanto aos estudos, mas sim, devem ser escutadas como a transição nos meios prioritários de traçar rumos no campo psicanalítico. Não escutar isso é abdicar da compreensão sobre processos transformativos importantíssimos em nossa contemporaneidade.
Terceiro ponto a concluir: se há uma oferta quase infinita de opções, como filtrar o que vale a pena ser assimilado nos estudos durante a formação?
Por quais critérios minimamente confiáveis podemos separar o material coerente com o método psicanalítico daquele que merece ser descartado? Ou ainda, como evitar que o amplo interesse na área venha a somar materiais de forma desconexa, criando uma compreensão desarticulada e desorientada de temas fundamentais à teoria e clínica? Minha primeira sugestão é a de se atentar ao lugar de analista: discursos muito centrados na experiência individual ou nas características pessoais cometem um equívoco muito significativo do ponto de vista da ética psicanalítica. Por mais que possam vir a serem sedutores e esteticamente interessantes, devemos nos atentar ao fato de que não se trata apenas de uma questão de estilo, mas do rigor necessário a uma transmissão implicada com os critérios pelos quais indagamos nossa experiência analítica. Segunda sugestão, igualmente importante: a consistência no conjunto do material oferecido. Instituições, grupos, canais ou quaisquer formas de agrupamento de profissionais e saberes respondem pelo ethos (lugar, morada) daquilo que veiculam. Nesse sentido, a busca por materiais singulares deveria responder pontualmente a interesses igualmente singulares: vou assistir a esse material porque ele é uma contribuição específica para um tema pontual. Mas, em termos gerais, e isso é ainda mais válido quanto mais no início da caminhada nos encontramos, faz-se necessária a aproximação a saberes que possuem uma certa articulação e são balizados pela coerência dos percursos e transmissões oferecidas. É justamente aí que cursos de pós-graduação tem oferecido acréscimos muito importantes ao processo de formação dos analistas. Tanto no sentido de poder testemunhar uma trajetória já realizada, quanto de afiançar uma conexão razoável entre temas abordados por profissionais com um certo reconhecimento necessário. Isso pode ocorrer em universidades ou instituições, valendo sempre como critério a pertinência da produção e relevância do percurso daqueles que respondem pela transmissão. Faço aqui uma menção honrosa ao trabalho desenvolvido pelo Instituto ESPE no sentido de oferecer diferentes caminhos e trajetos, de forma muito bem articulada e com a presença dos principais autores e autoras da teoria psicanalítica contemporânea. E quero crer que pude dar algum quinhão de contribuição na trilha de caminhos bem traçados ao longo dos últimos anos, nos quais tenho contribuído com cursos, aulas de pós-graduação e textos como esse. Que possamos seguir, como dizia Lacan, como trabalhadores decididos no âmbito da teoria e clínica psicanalítica.
Quarto e último ponto de conclusão, por fim mas não menos importante
Não podemos esquecer que um analista se autoriza de si mesmo... e de alguns outros. A célebre frase de Lacan não pode ser equivocadamente encurtada sob o risco de sermos lançados a nomeações precipitadas, ao desprezo à função essencial exercida pelas escolas de psicanálise, à supervalorização da avaliação pessoal sobre o próprio percurso, e ao embate fundamental que somente o exercício contínuo da submissão do saber à crítica abre como perspectiva ao analista colocar sua própria atividade em análise. Deixo aqui, portanto, o convite para que a formação seja pensada como abertura plural, como convite ao diálogo, como implicação humilde ao debate. Ingressantes no campo não podem visar cumprirem suas trajetórias de forma passiva, não se faz analista com câmeras desligadas, sem escrita ou sem produção. Análise demanda, sobretudo, escuta e enfrentamento, o que somente é possível por meio do laço social. Logo, dois pontos são cruciais à discussão e devem ser colocados sob constante reflexão: (1) a distinção entre estudo e formação e (2) a escolha dos parceiros nesse processo. Se me permitem a ousadia com o dito de Ernest Hemingway, saber quem está ao seu lado nas trincheiras deveria importar mais do que a própria guerra. Então, que avancemos juntos.
Sobre Tiago Ravanello: Psicanalista e pesquisador. Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo parte de seu doutorado sido realizada como bolsista do Centre de Sciences du Langage da Université de Paris - X - Nanterre pelo programa CAPES/PDEE. Realizou seu pós-doutorado em Psicologia/Psicanálise na Universidade de São Paulo (USP).
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